"Time present and time past are both perhaps present in time future and time future contained in time past."

T.S.Eliot

sábado, 24 de abril de 2010

24 de Abril de 2010 - 33 anos!

24 de ABRIL DE 2010
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..no meio do sarrabulho que, como todos os anos, já se instalou na casa, entrei no escritório ( sabes bem, aquele lugar confuso onde convivem sacos, sapatos e livros - e às vezes uma mala de viagem sempre aberta...um dia hei-de arrumá-lo, talvez quando arrumarmos os teus livros que vivem no sofá...) e olhei logo na direcção certa: lá estava ele, ao lado do Zeca, boas companhias!

Manuel Gusmão inicia assim a introdução aos'VIII Poemas de Ary dos Santos', em Maio de 1984:


" José Carlos Ary dos Santos tem 46 anos e sabe que vai morrer. Sabendo-o, escreve: poemas, sonetos.
São, de alguma forma, despedidas, como Sonata de Outono, Insónia, Infância; recados aos vivos através da invocação dos mortos mas também fragmentos de poética, como em Memória de Adriano, Telegrama a Gomes Leal, Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage; e ainda uma arte poética, como Poesia-Orgasmo. Ainda e sempre a mesma relação de zanga e de paixão com este país que mata de diversas fomes os seus poetas, mas ao qual ele quer como à irrecusável 'raiz de sofrimento'.
São, de todas as formas, decisões de vida ou, dito de outro modo, gestos vitais."

Sonata de Outono

(...)
Morro de pé, mas morro devagar
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.
Não me deixo ficar. Não pode ser.
(...)

Que magnífica, esta revolta contra a morte, a favor da vida, SEMPRE ! (...lembra-me ainda o velho grito - tão velho e tão longe agora, cada vez mais e mais sumido: 25 de Abril SEMPRE! )


alberta

segunda-feira, 15 de março de 2010

O MEDO

Entre 'A Tentação de Existir' de Cioran e 'O Medo de Existir' de José Gil vão muitos anos, um abismo cultural e um passo de gigante...aqui ficam algumas linhas do filósofo português, para reflectir e assistir amanhã ao diálogo entre ele e Eduardo Lourenço.

"Há pois que considerar o medo não tanto como um sentimento ou uma 'paixão'( como se dizia no séc XVII ), ou mais geralmente como um afecto que atinge uma maioria de indivíduos de um grupo social determinado, mas como um sistema que condiciona directa e decisivamente mecanismos macrossociais. Sistema de relações afectivas em imediata conexão com a máquina produtiva e com o poder.O medo impede certas forças de se exprimirem, inibe, retira e separa o indivíduo do seu território, retrai o espaço do corpo, estilhaça coesões de grupo - tudo isto tem efeitos mediatos e imediatos nos processos de produção económica, social, artística, de pensamento. Quebra-os, desacelera-os, esfarela-os.
Um afecto não é apenas uma experiência isolada da consciência do sujeito. Constitui antes uma célula em agenciamento múltiplo com outras células, outros afectos - e com espaços, tempos colectivos, engrenagens e cadeias sociais de produção. Enquanto agente motivador ou inibidor do trabalho, o afecto ( em qualquer sociedade, nas mais arcaicas como nas mais desenvolvidas ) faz parte do sistema produtivo.
Se o ( actual ) povo português fosse um povo de intensidades e não de sentimentos e de medo ( como Fernando Pessoa caracteriza o povo espanhol contrapondo-o ao português ), há muito que teríamos saído do estado de iliteracia e de fragilidade económica em que vivemos."

José Gil, PORTUGAL HOJE - O Medo de Existir

terça-feira, 9 de março de 2010

A Mesa de Deus

...não, não é aquela que foi encomendada para o grande refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie por um dos Sforza e a que Leonardo terá dedicado cinco anos da sua vida - lá está ainda, com Cristo no meio dos doze discípulos, antecipando já a agonia do fim, a traição de Judas... não, nada disso! A 'minha' mesa de deus ficava na cozinha da minha avó Ti Francisca. Era uma pequena mesa de madeira carcomida, com marcas de corte das facas com que preparava as couves para a saborosa sopa de hortaliça que apurava pela tarde fora e cujo 'olhinho' estava religiosamente guardado para o meu avô. Era usada todo o dia, desde o café da manhã até aos serões de depois do jantar, quando nos juntávamos a ouvir contar as histórias de lobisomens à luz do candeeiro a petróleo... já, ao fim da noite,no regresso às casas de cada um, nos acotovelávamos pelas escadas cheias de sombras, onde cresciam gigantes e almas-do-outro-mundo, aqueles mesmos que haviam de povoar os nossos sonhos pelas noites dentro.
Era à volta dessa mesa que,na dança das diferentes horas do dia, a minha avó circulava, preparando e servindo refeições, conversas, histórias, gostos e desgostos com quem entrava e saía...por ali passavam ,todo o santo dia, irmãos, cunhadas, filhos e filhas, marido e netos - e havia sempre um talo de couve, um pão com banha corada, um conduto , uma tangerina, um nada-quase-tudo, que nos agarrava à sua saia, até que uma traquinice lhe fazia soltar, num ralhete, a palavra proibida, que rematava sempre com a expressão com licença da mesa de deus...

sábado, 6 de março de 2010

Dia Internacional da Mulher...?

Volto a reler as tão comentadas 'Cartas Portuguesas', atribuídas a Mariana Alcoforado, a freira de Beja.
Para além do contexto específico que as motivaram, as Cartas constituem, enquanto objecto de estudo ou apenas de fruição estética, um exercício de escrita sobre a linguagem feminina, isto é, permitem-nos, ainda hoje, um olhar sobre a amplitude semântica da palavra. O texto de Mariana Alcoforado constrói-se, sobretudo, como uma inquieta e permanente interrogação da perplexidade feminina perante um mundo que continua codificado por referências masculinas.
Monólogo circular do discurso amoroso sobre uma impossibilidade consumada, as cinco cartas de Mariana não são senão um longo e último adeus, íntima evidência repetida mais para si própria do que para o amante.
Metáfora, por isso também, da incomunicabilidade - mesmo no amor - e da resignação, enquanto espaço sufocado de revolta, o universo feminino que atravessa este discurso é paradigmático de uma vivência marcada por uma diferença radical em contraponto com o universo masculino.
É essa radical diferença - que sobrevive acualmente num espaço só aparentemente comum - de postura, de mobilidade e de decisão que circunscreve, ainda hoje em dia, a fragilidade da mulher, redutoramente enquadrada nas múltiplas áreas profissionais, políticas e sociais em que se integra e age.

quinta-feira, 4 de março de 2010

'Falemos de casas.'

Falemos de casas. Do sagaz exercício de um poder
tão firme e silenciosom como só houve
no tempo mais antigo.
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De doces mãos irreprimíveis,
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca súbtil, rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes.
Pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
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E temos memória,
E absorvente melancolia,
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

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Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
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Imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmáticamente,
tocando uns nos outros -
comovidos, difíceis, dadivosos,
ardendo devagar.

Excertos do poema de Herberto Helder in 'Ofício Cantante'